quinta-feira, 14 de abril de 2011

ENSINAR TEM CHEIRO DE OFICINA.

Quando eu tinha cinco anos de idade, costumava ir à oficina de meu avô e explorar os mais intrigantes objetos. Ele era um sapateiro. Não daqueles que, heróicamente, vivem a custa de pequenos consertos em botas ou sapatos; ele os construía do couro bruto até a última pincelada de tinta preta. Eu sentia o cheiro do couro, da tinta, da cola e do pó. Com cinco anos de idade, a imagem de um homenzarrão de avental de couro e uma faca afiada na mão impunha muito respeito. Mostrava-me o couro cru sobre o balcão, os moldes, os cortes, as formas, as máquinas de lixar que ele próprio inventara e o processo de fabricação até o produto final sobre a prateleira.


Mas não era essa imagem rude que me fascinava. Era seu jeito carinhoso de pegar-me no colo, abrir um jornal e explicar com uma paciência enorme o som de cada sílaba e o nome de cada letra. Não havia uma didática especializada, não havia nenhum método pedagógico específico, mas fui alfabetizado. Aprendi a ver o mundo inteiro através daquelas páginas enormes suspensas no ar por mãos calejadas, rudes, ásperas.


O que fez a diferença? Por que ainda hoje lembro de sua voz, de suas correções e de seus elogios? Porque havia amor. As botas cano alto, os sapatos de salto ou o meu processo de alfabetização recebiam uma espécie de atenção que só existe naqueles que amam. Essa marca carrego ainda hoje. Lembro-me do carinho, da dedicação, das broncas e dos elogios.

 
Hoje meu jeito de ensinar está impregnado pela memória de meu avô. Provoco meus alunos, aponto falhas, elogio seus progressos e acima de tudo, respeito-os.


Quando leciono, provoco reflexões, assumo o argumento contrário e luto por ele até ser esmagado pela opinião bem fundamentada de meus alunos. Faço o contrário também. A síntese é construída por todos nós.


Quando apresento um conhecimento já elaborado por um autor, vou trocando idéias com meus alunos para que esse conhecimento possa ser incorporado, ligado, relacionado aquilo que eles próprios ja construiram, possibilitando-lhes a aprendizagem significativa como diz o educador David Ausubel.


A maiêutica socrática em que uma idéia se faz nascer e em seguida é lapidada por meio de diálogo argumentativo é o tom de minhas conversas com os alunos.


Leciono em cursos de pós-graduação. Como trabalho final, os alunos precisam construir um texto. Escolhem o tema, a forma de desenvolver o artigo, as obras à serem pesquisadas, o problema a ser levantado e a hipótese a ser defendida ou negada. Esses alunos tem a possibilidade de criar, de serem autores. Em suas próprias vidas é isso que precisam constantemente fazer. Quando desistem desse projeto, tornam-se escravos da mídia, da sociedade capitalista, da ostentação dos bens materiais, da moda e do consumismo em detrimento dos valores humanos de solidariedade, amizade, tolerância e de luta por igualdade e justiça social.

 
Entretanto, surgem alunos que não "aderem" ao processo. Preferem aulas expositivas nas quais tudo é sintetizado e explicado de forma que possam, passivamente, receber as informações e anotá-las pensado que suas anotações, uma vez memorizadas, podem ser transformadas em notas. Triste realidade.

Os alunos que aderem ao processo são diferentes. São autores de sua própria história, como diria Paulo Freire. Assim, o desafio de alcançar os alunos passivos torna-se maior. É preciso dizer "não importa a nota, o que você veio fazer aqui?" , "De que forma posso lhe ajudar?". Enfim, é preciso colocá-los no colo, abrir um jornal e carinhosamente ajudá-los a entender o mundo. Ajudá-los a perceber que não são as letras que importam, mas o que elas dizem. De vez em quando, uma bronca, uma provocação, uma pergunta para guardar. Outras vezes, é preciso mostrar o couro cru sobre o balcão e a bota de cano alto na prateleira, deixando que a imaginação preencha o espaço entre eles.

Meu avô faliu. A indústria de calçados aprendeu a fazer sapatos em série e a diminuir os preços. Ninguém mais queria suas botas e seus sapatos. Preferiam tênis ou sapatos que logo pudessem ser substituídos por outros mais modernos, "da moda". Entretanto, meu avô jamais foi um fracassado. Ele teve sucesso numa das maiores e mais significativas missões: educar.



MARCOS MEIER é mestre em Educação, psicólogo, escritor e palestrante.

O texto acima é parte integrante do livro "SAPATOS E LETRAS", do Prof. Marcos.
Este e todos seus outros livros, você encontra no site  http://www.kapok.com.br/.
 
Publicado, também, na Revista Profissão Mestre.
 

6 comentários:

Alnik disse...

Esta "oficina viva", dos sentidos e dos sentimentos, cada vez mais rara nos dias atuais. Belo texto!

Anônimo disse...

AMEI PROFESSOR!
Continue postando essas pérolas pra nós.
Abraço!

Ana Silva disse...

É por tudo isso que sinto que os melhores momentos do meu dia, passo em sala de aula.Estas atitudes fazem toda a diferença!

Marilia disse...

Adorei a aula. Trouxe a lembrança de minhas primeiras aulas também, e minha professora tinha cheiro de "jaca", fruta típica da minha
terra, o Piauí.

Anônimo disse...

Lembro da ansiedade quando sabia que minha avó estava chegando lé em casa. Ela mesmo beem velhinha até hoje é uma contadora de histórias. Hoje quando pego um novo livro pra ler sinto a mesma emoção de quando minha avó sentava na minha cama pra contar da maneira mais interessante do mundo toda a trajetória de vida de alguém que teve dez filhos e já morou em várias cidades do interior da Bahia. Era ela quem respondia tos os meus por quês.

Adriana

Anônimo disse...

O que mais posso acrescentar?! Simplesmente belo e verdadeiro!
Que O Creador continue sempre te iluminando!
Isabelle dos Santos