sexta-feira, 19 de março de 2010

CADERNETA DE ANOTAÇÕES


Havia sol lá fora. A sala de aula estava cheia de crianças. Rosinha tinha apenas sete anos de idade. Amava a escola, as amiguinhas, o recreio – principalmente o recreio - e admirava a professora, dona Geralda. Era uma mulher bonita, alta, inteligente e gostava de se vestir impecavelmente bem. Seus vestidos eram maravilhosos. Simples, mas muito bem passados e limpos. Davam sempre a impressão de que dona Geralda acabara de tomar banho e colocar seu mais novo vestido para vir à escola.
Rosinha, por admiração à professora, jamais deixava de copiar algo do quadro negro ou de fazer as lições de casa. Sentava-se na primeira carteira, colada à mesa de sua musa inspiradora. Também gostava muito de responder às perguntas, pois era elogiada em seguida. Era muito bom ser criança, era muito bom ser uma aluna dessa professora.
Certo dia, daqueles que a memória se recusa a deixar de lado, Rosinha distraiu-se. Um minuto de distração. Virara-se para trás e sorria para uma amiga que acabara de perguntar-lhe algo sobre o lugar que se encontrariam no recreio.
- No monte de cascas de arroz! – respondera sorrindo. Era onde adoravam ir para brincar de salto em altura. Saltavam e caiam sobre um monte de cascas de arroz, comum em escolas rurais antigas. Hoje, colchões de espuma.
- Tá bom! A gente se vê lá.
Nesse exato momento, a professora acabara de passar a lição de casa no quadro negro. Rosinha não sabia se era para fazer agora, ou anotar na caderneta como tarefa de casa.
- Professora! É para anotar na cardeneta? – Perguntara sem perceber seu erro na inversão das letras.
- Como Rosinha? – A professora queria se certificar de que realmente ouvira a palavra ser dita de forma equivocada.
- É para anotar na cardeneta? – repete a pergunta inocentemente.
- Rosinha, por favor, fale bem alto para toda a turma ouvir – dona Geralda pedia, ela também, em voz bem alta.
E Rosinha, de coração limpo, de alma ingênua, feliz em atender a mais uma das perguntas de sua amada professora, repete:
- É para anotar na cardeneta? – e sua voz de menina ecoa na sala, misturada ao silêncio constrangedor que se instalara.
Quase que instantaneamente, a professora vai ao quadro negro e, de forma ríspida e desrespeitosa, escreve em letras garrafais: CARDENETA. Logo à direita, escreve, com o mesmo ímpeto: CADERNETA. E, imersa em sua maldade adulta, risca energicamente a palavra errada, dizendo com um tom de reprovação e ironia:
- O correto é CADERNETA e não CARDENETA como a Rosinha disse. Prestem atenção para não cometer esse erro – a voz de dona Geralda soava como de alguém cuja raiva estava esperando a hora certa de ser expressa.
A dor invadiu o peito de Rosinha e se misturou ao silêncio dos colegas que poderiam ter rido, mas não o fizeram por medo. Esse mesmo silêncio se perpetuou em todo o restante da escolaridade de Rosinha, que jamais arriscara fazer qualquer pergunta novamente.
A musa caiu do pedestal e mergulhou na lama dos insensíveis, onde nenhum vestido bem passado sobrevive ileso.
Uma pequena lágrima cai do rosto de Rosinha e mancha, ironicamente, o que acabara de escrever na caderneta: “Lição de casa”.

Havia sol lá fora.

MARCOS MEIER é mestre em Educação, psicólogo, escritor e palestrante. Seus textos encontram-se no site www.marcosmeier.com.br e seus livros no www.kapok.com.br.







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